As histórias de criação, presentes em quase todas as culturas, não são apenas relatos literais da origem do cosmos e dos seres humanos. Como afirma o psicanalista Erich Neumann, elas são mitos sobre a origem da consciência. Esses textos oferecem insights profundos sobre a nossa existência, nossa relação uns com os outros e com uma dimensão transcendente da realidade. A Bíblia, por exemplo, descreve o homem como uma unidade de natureza tríplice: espírito, alma e corpo.
A criação do “céu” e da “terra” simboliza a passagem da não-manifestação para a manifestação. O “céu” representa o reino espiritual, enquanto a “terra” simboliza o material. O movimento do “espírito de Deus sobre a face das águas” representa a alma cósmica (anima mundi), um meio pelo qual a energia espiritual, até então não distribuída, diferencia-se e cria as formas visíveis. A primeira manifestação desse movimento foi a luz — não a luz física, mas uma luz interior que permeia tudo, onde o espírito determina as formas das coisas que serão. Essa luz, ou “sol espiritual”, é sempre ativa e expansiva.

A imagem de Deus e a jornada da consciência
A afirmação de que o homem foi feito “à imagem e semelhança de Deus” não se refere à forma externa, mas a uma semelhança mental. A mente humana é vista como uma reprodução em miniatura da mente divina. A história de Adão e Eva no Éden é uma alegoria do crescimento da consciência e do surgimento do ego. O Éden simboliza a unidade indiferenciada da psique humana com a natureza e com o divino. A “queda” representa a entrada do ser humano em um mundo de dualidade e conflito, um passo necessário para que o espírito, ao se envolver nas naturezas intelectual e material, alcance a individualização perfeita.
No jardim do Éden da alma, as plantas que crescem são pensamentos e ideias. A Árvore da Vida é a percepção mais íntima do Espírito, enquanto a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal representa a dualidade. Adão e Eva não são personagens separados, mas princípios na individualidade humana: Adão (terra) é o corpo, e Eva (respiração) é a alma ou a mente.

A serpente e a evolução da alma
A expulsão do Éden marca o início da evolução da humanidade em um mundo de dificuldades. A serpente, que causa a “queda”, simboliza a vida em sua forma mais externa, a manifestação final do princípio vital. Quando a serpente é vista de forma ignorante, separada de sua origem divina, ela se torna um símbolo negativo de rastejamento e morte. A “queda” simboliza a concepção que ignora o elemento espiritual nas coisas, atribuindo toda a sua energia apenas a si mesma, sem reconhecer que é uma criação de um poder superior.
A “semente da mulher” que esmagará a cabeça da serpente é a prole da mente iluminada, as novas ideias que surgem após experiências dolorosas e longo trabalho mental. A evolução da alma leva a uma inteligência cada vez mais elevada, criando uma “inimizade” entre a concepção iluminada e a não iluminada da vida. A vitória final é a “semente da mulher”, que é o ideal divino supremo: o reconhecimento da filiação divina do homem. Quando o homem atinge o conhecimento dessa verdade, ele alcança sua ressurreição.

O retorno ao Éden
As “esfinges aladas” e a “espada flamejante” que guardam o caminho para a Árvore da Vida não estão impedindo o retorno, mas sim preservando o caminho. O retorno ao Éden simboliza a etapa final do processo de individuação, o encontro com o eu e o divino. O propósito da evolução é nos conduzir a uma luz divina, onde veremos além das nossas experiências passadas, e revelações do espírito nos abrirão mundos de esplendor e realização infinita.
Leitura:
-Thomas Troward (1913). Bible mistery and meaning.
-John S. Übersax (2012). Psychological allegorical interpretation of the bible.
-Sterwart, D. J. (2014). The emergence of consciousness in Genesis 1-3: Jung’s depth psychology and theological anthropology.
-Stuart Z. Charmé. The psychological meaning of Adam and Eve.
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